Domingo, 22 de Dezembro de 2024

O Ideb e a mercantilização da educação básica

Entenda por que a educação básica é tratada como mercadoria e está a cada dia pior


Publicada em 03/02/2021 às 16:40 - Atualizada em 04/02/2021 07:03


Foto: Google

Por Isaque Lins em Ad Vocare

A educação faz-se com dose maior ou menor de mentiras vitais, responsáveis pela continuação da vida social. (ANDRADE, p. 82, 2019)1

Primeiramente, é importante esclarecer que neste texto não será realizada a análise estatística do Ideb. O que se fará é apenas uma explicação de como o índice funciona e os principais problemas dele decorrentes. Vamos entender o que é o índice segundo a apresentação constante no sítio oficial do Governo Federal:

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi criado em 2007 e reúne, em um só indicador, os resultados de dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. O Ideb é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e das médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). [...] O índice varia de 0 a 10. A combinação entre fluxo e aprendizagem tem o mérito de equilibrar as duas dimensões: se um sistema de ensino retiver seus alunos para obter resultados de melhor qualidade no Saeb, o fator fluxo será alterado, indicando a necessidade de melhoria do sistema. Se, ao contrário, o sistema apressar a aprovação do aluno sem qualidade, o resultado das avaliações indicará igualmente a necessidade de melhoria do sistema. O índice também é importante condutor de política pública em prol da qualidade da educação. É a ferramenta para acompanhamento das metas de qualidade para a educação básica, que tem estabelecido, como meta para 2022, alcançar média 6 – valor que corresponde a um sistema educacional de qualidade comparável ao dos países desenvolvidos.2

A ideia que o Ideb traz é a de verificar se todos estão aprendendo e se passam de ano, ou seja, se avançam na jornada escolar. A prova é realizada pelos alunos do final de cada ciclo escolar: 5º e 9º ano do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio.

Como qualquer índice, o Ideb tentar trazer um resumo da realidade ali avaliada. No entanto, há que se ter cautela nas comparações entre cidades, regiões, estados; isso porque, além das peculiaridades de cada região, teremos também a diferença dentro da composição da própria nota final, de modo que, demanda bastante atenção, comparar duas cidades, por exemplo: saber se uma é superior a outra no quesito fluxo ou pela nota da Prova Brasil. Vejamos mais detalhadamente: imaginemos que uma cidade tenha a nota maior em relação a outra por apenas um décimo de ponto e que ambas tiveram nota 1 na aprovação (fluxo). Neste caso, elas são iguais no que diz respeito ao avanço dos alunos na jornada escolar, porém, são diferentes no quesito aprendizado.

O fluxo trabalha a análise da aprovação, reprovação e abandono da escola, sua variação depende deste tripé. Para que ele cresça é necessário que mais aluno permaneçam na escola e avancem no ensino sem repetência. Para se ter o fluxo nota 1, a rede de ensino deve erradicar a reprovação e o índice de abandono. E aqui reside a fraude!

Para o crescimento da nota na avaliação Saeb, é necessário que os alunos avancem no aprendizado. A proficiência dos alunos é avaliada na Prova Brasil através da leitura (língua portuguesa) e resolução de problemas (matemática). A escala Saeb avalia as disciplinas, em linhas gerais, da seguinte maneira: português de 0 a 350 e matemática de 0 a 425.

O que é educação básica?

Segundo o art. 4º a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB3, a educação básica é aquela “obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma: a) pré-escola; b) ensino fundamental; c) ensino médio.”

Entendido o que é o Ideb e como seus números são elaborados, passemos a análise de como esses números são trabalhados na base da educação e a consequência disso para os alunos.

Em um artigo da revista Carta Capital foi analisada a experiência de Sobral (CE). Lá se verificou que, para atender aos índices do Ideb, foi dada maior importância às matérias de língua portuguesa e matemática, as disciplinas aplicadas no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). A consequência dessa decisão administrativa é que as demais disciplinas escolares, tão importantes quanto português e matemática, são relegadas a segundo plano. Outro comportamento observado em Sobral foi a manipulação do Censo Escolar, nele passou a se notar que o índice de reprovação é igual a zero.4

As faculdades de Sobral passaram a observar que os alunos da escola pública estavam muito aquém no nível de aprendizado, em relação aos alunos de escolas particulares. Mesmo aqueles alunos oriundos das “escolas-modelo” não atendiam às expectativas para um acadêmico.

Vê-se que para alcançar a meta fixada pelo MEC, os agentes envolvidos na gerência da rede de ensino acabam por cometer fraudes que implicam diretamente no resultado do Ideb e, por consequência, influenciam na qualidade do ensino.

Eduardo Cappocchi, um pesquisador da Universidade de São Paulo, em sua dissertação de mestrado, aponta para o mesmo problema da Carta Capital: a atenção exagerada para língua portuguesa e matemática. Além desse problema, chamam atenção também as fraudes que a pesquisa denuncia.5

Os protocolos de aplicação da Prova Brasil são construídos para evitar fraudes, vazamentos de questões e interferência dos professores, com o emprego de aplicadores externos. (CAPPOCCHI, 2017, p. 101)

O pesquisador qualificou as fraudes em ingênuas e sofisticadas. Um exemplo de fraude ingênua é o professor ou avaliador indicar a resposta correta; isso não funciona porque as provas são aplicadas em 21 (vinte e um) cadernos diferentes, logo, o gabarito não é o mesmo. O mesmo entendimento é aplicado ao avaliador ou professor que permitem que os alunos “colem” durante a prova. Um exemplo de fraude sofisticada seria a indicação da resposta, não conforme o gabarito, mas conforme a pergunta feita e a alternativa correta; assim o avaliando poderia identificar o gabarito certo. Também seria uma fraude sofisticada provocar a falta dos alunos menos eficientes no dia da avaliação. Assim, a prova só será realizada por aqueles alunos mais capacitados.

Desde 2015 o edital da prova exige que pelo menos 80% dos alunos participem da prova, sob pena de eliminação da instituição. Foi uma forma que o MEC encontrou para evitar a fraude de dispensar os alunos menos proficientes. Em 2015, houve uma redução no orçamento para a realização da prova, o que implicou em mais um problema: a dificuldade de contratação de avaliadores externos, possibilitando assim fraudes durante a prova.6

O jornalista José Luiz Bittencourt, também apontou as fraudes ocorridas em Goiás. Segundo seu artigo, os professores estaduais não comemoraram o aumento do Ideb porque sabiam que o resultado do Ideb em Goiás foi obtido através de uma grande manipulação operacionalizada pela Secretaria de Educação.7

[...] excluiu os alunos dos cursos noturnos da avaliação (eles são os que menos mostram rendimento e aprovação e, ao mesmo tempo, os que mais abandonam a escola) e mais alguns truques, como o conhecimento prévio da prova (que repete muitas questões, devido a uma sucessão de avaliações, transformadas em cartilhas, com quase todas as questões da prova, que os professores são obrigados a trabalhar em classe). Infelizmente, o “adestramento” dos alunos para o IDEB substituiu o verdadeiro ensino, em Goiás e se constitui em um crime contra os alunos das escolas estaduais. Veja mais essa: no dia da prova, por orientação da Seduce, os alunos mais fracos são dispensados de comparecer ou, se comparecem, não têm as suas provas computadas.

E qual o motivador para a prática destas fraudes, se elas claramente são prejudiciais à educação? O Governo de Alagoas, por exemplo, em 2018 premiou municípios que atingiram meta do Escola 10 com R$ 20 milhões. Dentre os 102 municípios de Alagoas, 38 cidades alcançaram as metas pactuadas no Escola 10 e partilham o valor disponibilizado.

Pelos anos iniciais do ensino fundamental – 1º ao 5º ano, 17 municípios recebem a quantia de R$ 588.235,29 cada. As 21 cidades que bateram a meta pelos anos finais – 6º ao 9º – recebem do Governo do Estado o total de R$ 476.190,47 cada uma. Os valores para cada município serão divididos em duas parcelas.8

A Lei Estadual nº 8.224, de 19 de dezembro de 2019, criou uma bonificação por resultados no âmbito da Secretaria de Educação. Vejamos alguns artigos da lei:

Art. 1º Fica instituída, nos termos desta Lei, a Bonificação por Resultados, a ser paga aos servidores lotados e em efetivo exercício na Secretaria de Estado da Educação – SEDUC, decorrente do alcance de metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB previamente estabelecidas, fixadas em portaria do Secretário de Estado da Educação, visando a estimular a busca pela melhoria contínua da aprendizagem dos estudantes e da gestão das unidades escolares e administrativas no âmbito da SEDUC.
[...]
Art. 3º Farão jus ao recebimento da Bonificação por Resultados, em decorrência do alcance de metas pactuadas, os servidores que obtiverem, no máximo, 5% (cinco por cento) de taxa de absenteísmo, bem como que permaneçam lotados e em efetivo exercício na unidade premiada no ano letivo de aplicação do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB por um período igual ou superior a 8 (oito) meses.
[...]
Art. 8º O valor correspondente à Bonificação por Resultados será de R$ 2.000,00 (dois mil reais), a partir do exercício de 2019, para os servidores com carga horária de 40 (quarenta) horas semanais, sendo proporcionais às demais cargas horárias e ao alcance das metas preestabelecidas para cada etapa, independentemente do cargo ocupado pelo servidor.

O problema de premiar financeiramente servidores que já são pagos para desempenhar determinada função é que isso se torna uma meta e, caso se verifique que a meta não será alcançada, o retorno financeiro extra é um excelente motivador para a fraude. Afinal, como se viu, o resultado não depende apenas do servidor, mas também do aluno.

Se verifica que esses comportamentos fraudulentos são cada vez mais adotados no País, o que explica o quadro atual deplorável da educação brasileira. A boa educação já não é um fim nobre a ser alcançado, mas uma meta a ser “batida”, uma mercadoria a ser vendida.

Por fim, além da fraude, há o estelionato midiático praticado por gestores públicos. Quando do resultado do Ideb de 2019, muitos gestores fizeram verdadeiras campanhas publicitárias propagando o crescimento da nota de seus municípios. No entanto, quando se analisa as notas por escola, de maneira detalhada, vê-se que, mesmo fraudando o fluxo, as notas estão baixas, necessitando melhorar e sem cumprir a meta do Mec.

Abaixo teremos o resultado de 2019 por município para que nossos leitores consultem o resultado e resgatem da memória a campanha publicitários de seus prefeitos e prefeitas. Verão que muitas escolas estão sem dados (ou seja, eliminadas), em sinal de alerta ou atenção.

Clique aqui para ver o Ideb de 2019 por escola e por cidade:

Barra de Santo Antônio;
Japaratinga;
Maceió;
Maragogi;
Matriz de Camaragibe;
Paripueira;
Passo de Camaragibe;
Porto Calvo;
Porto de Pedras;
São Luís do Quitunde;
São Miguel dos Milagres.

Aqueles que desejarem aprofundar a pesquisa, poderão fazê-lo através do Portal QEdu.

Referências:

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. O avesso das coisas: aforismos. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

2 Disponível em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/ideb>

3 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>

4 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/a-verdade-sobre-o-ideb-de-sobral/>

5 CAPOCCHI, Eduardo Rodrigues. Avaliações em larga escala e políticas de responsabilização na educação: evidências de implicações indesejadas no Brasil. 2017. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi:10.11606/D.48.2017.tde-13092017-145218. Acesso em: 2021-02-03.

6 Disponível em: <https://paineira.usp.br/aun/index.php/2018/05/07/avaliacoes-brasileiras-sao-alvos-de-fraude-por-bonificacao-as-escolas-afirma-pesquisa/>

7 Disponível em: <https://www.blogdojlb.com.br/2018/09/28/professores-nao-comemoraram-o-avanco-da-educacao-de-goias-no-ranking-do-ideb-porque-sabiam-que-nao-corresponde-a-realidade-do-ensino-estadual-e-foi-obtido-atraves-de-manipulacao/>

8 Disponível em: <http://agenciaalagoas.al.gov.br/noticia/item/28402-governo-de-alagoas-premia-municipios-que-atingiram-meta-do-escola-10-com-r-20-milhoes>


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Sobre o autor
Isaque Lins
Advogado, escritor e membro das Academias Quitundense e Maceioense de Letras.
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