Sexta-Feira, 17 de Maio de 2024

Um ponto de ônibus


Publicada em 26/10/2020 às 21:00 - Atualizada em 27/10/2020 05:50



Por Saulo Oliveira em Vivendo e cronicando

     Meu ônibus preferido é o 602. Ele sai do terminal, entra nas Av. Carlos Gomes de Barros, Rua da Codeal, faz um balão no bairro, pega a Fernandes Lima e, finalmente, desce para a praia. Aliás, a praia da Ponta Verde, vista da janela do 602, é o ponto mais bonito da rota: as águas verdes que vão até o final da vista e se casam com o azul do céu, os pontinhos na água que são as pessoas tomando banho de mar, os guarda-sóis, os barquinhos coloridos dos pescadores, os próprios pescadores, as banhistas que dão um show de beleza e acentuam aquele encanto, as pessoas fazendo exercício, o grito de quem vende água, os pontos de ônibus personalizados, etc.

     Pois bem, numa dessas viagens o ônibus parou em um ponto vazio, não tinha ninguém para subir, mas também ninguém desceu. Foi estranho, quase todos olharam para o motorista. O ônibus seguiu destino e a imagem do ponto solitário ficou pregada, esperando não sei o que para desaparecer.

     Uma verdade é que ainda hoje tenho aquela imagem e agora escrevendo fiquei em dúvida se era um ponto solitário ou apenas um ponto, sem necessidade de adjetivo. A experiência que aquele ponto adquiriu ao longo de sua existência através de vidas que por ali passaram, histórias que foram contadas, assaltos que ali aconteceram, pessoas que se conheceram e conexões que ele intermediou, coisas que ali foram perdidas e tantos outros eventos, é de dar lição aos mais novos. É um verdadeiro “Se aquele ponto falasse”. No entanto, é apenas um ponto de pessoas que estão somente de passagens esperando um ônibus que as levem à outro ponto.

     É diferente de uma casa. A casa é sinônimo de segurança contra o mau tempo. É onde se compartilha sonhos, crenças e valores. É na casa que cada morador sabe que, independente de quem seja, será bem cuidado e protegido. É sinônimo de lar e de aconchego. Nesta aqui se come, dorme, descansa e se restaura. Quando o dia está chuvoso, o lugar preferido é o sofá ou a cama de casa, assistindo a série favorita ou lendo o livro que acabou de comprar, nunca será aquele ponto - de passageiros - aberto aos mais diversos pingos de chuva.

     Outra verdade é que somos todos um ponto ou uma casa. Há quem diga que tem em si um pouco dos dois, mas desses nunca saberemos à quem ele se fez ponto ou à quem se fez casa e a dúvida é mortalmente perigosa. Quem é casa jamais sentirá a paz da leveza e do desapego, pois tem a alma de acolhimento que não lhe permite deixar que passem apenas. O prazer de saber que veem em suas telhas a proteção e sob elas a certeza do cuidado, nunca sentirá o ponto.

     Bom, querido leitor, bom, encantadora leitora, este é meu primeiro texto para a coluna e farei dela um ponto de ônibus, pois não tenho a intenção de lhe prender aqui e muito menos terei telha para te acomodar. Exposto e exposta aos mais diversos acontecimentos estarás quando nesta coluna te encontrares. Garanto que jamais sentirás aqui o aconchego do teu carpete, mas, se estiveres disposto a trazer o teu guarda chuva, sairás deste para outro ponto com um novo olhar sobre o teu cotidiano.


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Sobre o autor
Saulo Oliveira
É quitundense por sorte, escreve crônicas por interesse no cotidiano e mantém em dia seu desinteresse pelo rotineiro. Toca violino, flerta com as artes e com o barulho das ondas noturnas do mar. É acadêmico de administração.
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